quarta-feira, 8 de novembro de 2017

A cadeira

Eu tenho isso de achar que se eu deixar a cadeira do computador longe da mesa dele, quando eu acordar, no meio da noite, vou achar que parece que alguém a afastou pra sentar.
Ou pior;
Que alguém tá sentado nela.
Então eu sempre faço questão, ainda que já deitada, de tomar segundos do meu tempo pra organizar ela de volta pra baixo da mesa do computador.
Mas de quê adianta, se em todas as noites, assim como nessa,
Quando eu acordo no meio da noite,
Ela tá lá, uns 30cm longe da mesa do computador novamente,
Virada pra minha cama
Estática
Como se alguém sentado confortavelmente me observasse dormir.
A noite toda. 

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Irresistível

Era uma faca Tramontina Churrasco.
Um dia, num das comuns festas de família que promoviam almoços e lanches aleatórios, meu tio conversava com meu pai ao lado da churrasqueira. Rindo, virando o espeto do churrasco, tirando o espeto do churrasco, rindo, aumentando o tom de voz, tirando carne do espeto, botando carne no espeto, cortando churrasco, virando o espeto do churrasco, rindo, comendo churrasco, cebola, linguiça, rindo. A faca se desvencilhou da mão de ambos, se desvencilhou da mão do meu tio. Foi ao chão e se vingou da queda no pé do meu tio. Quem mandou vocês me soltarem? Cortou fundo e feio, dos cortes que sangram só de existir, sangrando mais a cada pisada, sangrando mais a cada levantada pra checar a gravidade do corte. Sangrando mais ainda quando você tapa o corte e o esconde da luz do sol. Tá tudo escuro! Meu tio foi dormir na rede ainda sangrando, continuou sangrando. Hoje tem marcas. Deixou marca.
Um dia, num jantar a noite, não sei se era Natal, não sei se era festa de aniversário. A faca cortou o dedo da minha tia, só pq tava lá. Só pq ela lembrava do churrasco, só pq cortar foi bom, só pq cortar é bom, só pq a sensação de cortar outra coisa além de churrasco foi tão boa. E esse dedo tava tão pertinho. Cebola arde, dedo é melhor. A pele humana é delicinha. A faca não resistiu.
Era uma faca Tramontina Churrasco.

A realidade é uma teia de aranha

Fixo
Acordei, desci as escadas e meus pais estavam, um lavando a louça e outro secado a louça. Quando acabaram, mamãe se trocou e os dois foram comprar algo no Alecrim. Meu irmão nunca acorda antes das 12h, nem pra tomar café, nem pra nada. Só acorda quando minha mãe chama pra almoçar.
Então eu continuei a tomar meu café sozinha. Como eu gosto. No silêncio. Meditando sobre a comida.
Depois de tomar café, me levantei, peguei meu prato vazio, com apenas alguns flocos soltos de cuscuz (não me lembro a última vez em que deixei comida no prato...), minha casca de mamão raspado e minha caneca de café (preciso comprar uma caneca pra mim). Joguei o mamão fora e lavei tudo, colocando pra secar logo em seguida. Contornei a mesa novamente, guardei o resto do cuscuz em cima do fogão, recolhi a toalha, bati e estendi. Contornei a mesa novamente, peguei minha garrafa dágua, enxi até a boca, e contornei novamente pra guardar o pote de bolacha jucurutu. Ao lado do telefone fixo da casa.
Fixo.
Quando coloquei o pote de bolacha jucurutu na prateleira, meu olhar passou pelo telefone fixo. Algo me chamou a atenção:
Em uso.



Chegou carta
Eu sempre vou e volto da academia a pé, afinal ela é no final da rua perpendicular à minha. E é uma boa caminhada, vou no fim da tarde e volto a noite. Não tenho medo de assaltos pois não levo nada de valor. E tenho minha garrafa de água grande e pesada de metal pra me defender (até parece..) a qual eu sempre faço questão de levar cheia. Ontem, na volta da academia, andei do lado contrário do que eu costumo andar, só pq faltei a aula de Funcional. As pessoas iam logo começar a correr por aquele lado, o lado na contra mão dos carros, pois era mais seguro.
Era mais seguro
Então caminhei pela calçada de casas que eu não costumo caminhar. Poucas casas são voltadas pra aquela rua. Poucas tem portões, caixas de correio, interfones virados pra aquela avenida. Em uma das poucas delas que tem, escutei um barulho na caixa de correio assim que eu passei.
Um abre e fecha metálico
Chegou carta!
É pra você


Em ambos os casos, continuei a caminhar pela calçada e pela minha vida, fingindo e esperando que nada tivesse acontecido. Como se o lado de lá não pudesse olhar pra gente por uma fresta na caixa de correio de uma rua normal. Como se a realidade dessa dimensão não fosse realmente uma teia de aranha super maleável.

Taxidermia

Ontem, num carro parado na praça do gringos. Gotas de chuva caiam pelas janelas e todas as luzes de dentro do carro estavam desligadas. Tudo era escuro, sombra de piscina, fumaça, isqueiro, conversas, vozes femininas.
A conversa, de repente, chegou no assunto de brinquedos infantis. Eu e Carol contamos que usávamos o Max Steel do nosso irmão pra brincar com nossas Barbies, pq o Ken parecia gay, sem graça, almofadinha.
Lina disse que não tinha irmão, então usava o boneco de pano que a mãe tinha em casa.
Lina disse que o boneco era muito feio e bem maior que a Barbie,
e que quando ela era criança, ela tinha muito medo dele.
Lina disse que segurava o boneco entre as suas mãozinhas de criança e olhava pra ele
Olhava,
Olhava,
de frente, de costas.
Lina disse que o corpo do boneco tinha sido fechado na parte de trás de seu corpinho,
a costura dele era na
nuca.
Lina disse que pra ele ser cor de pele, a costureira tinha feito o boneco com um pano branco em cima de um pano
vermelho,
e lá na nuca era o lugar onde esses dois tecidos se encontravam e eram
costurados.
Lina disse que essa costura parecia uma cicatriz.
Lina disse que segurava o boneco entre as suas mãozinhas de criança e olhava pra ele
Olhava,
Olhava,
de frente, de costas.
Olhava a costura.
O encontro dos dois tecidos.
Parecia muito uma cicatriz... Porra, como parecia uma cicatriz...
Ali, na nuca, com a extensão da cicatriz-costura escondida pela roupinha de pano do boneco, pela camisetinha.
Mas que devia descer nas costas, seguindo a coluna vertebral que o boneco não tinha
(será que já teve? será que foi por lá que foi tirada?)
até o cu.
Ali, na nuca, aquela cicatriz de pano costurada com fios finos tão finos e tão frágeis de serem abertos...

Vovó

Ontem ouvi um amigo contar uma história para nós que eu julguei digna de Stephen King.
Lutei muito comigo mesma pra guardar essa memória, pelo menos essa, pra poder escrever no outro dia. Lutei muito comigo mesma naquela dúvida eterna de "meu Deus, preciso muito escrever isso agora pra não esquecer" e "Eu estou no meio de um rolé, não quero ficar no celular. Vão achar que eu tô entediada, ou falando com alguém que não tá lá, ou fofocando, ou etc etc..."
Agora, a noite, do nada me veio a história.
E espero escrevê-la de uma tirada só.(28-04)
(voltei aqui hoje pra terminar...29-04)


Ele dizia.
Quando eu era pequeno, eu lembro que minha vó não tinha perna. Só que eu não sabia, eu nunca tinha visto. Eu sempre via ela andando normal ou sentada, nunca reparei se ela andava diferente, nunca reparei se ela tinha dificuldade pra levantar ou sentar. Talvez por eu nunca ter pensado na possibilidade do que existia. E por não ter pensado, muitos sinais passavam despercebidos. Eu só olhava pra cara de Vovó.
Um dia, eu lembro de andar no corredor da casa da velha. E escutar o barulho da rede na parede. Alguém se balançando, quase pegando no sono. Passei em frente ao quarto dela e congelei ali mesmo, no meu triciclo. Eu lembro do encosto do pé daquele troço ter batido na minha canela e eu nem reparei. Senti um arrepio subir como um manto, das minhas canelas até o pescoço, passando pelos meus ombros, me cobrindo como duas mãos grandes de grandes unhas, peludas de grandes pelos, fortes mas magras, com os dois dedos indicadores passando pelo meu pescoço e pressionando minha garganta; fazendo ser difícil respirar. Difícil engolir. Como se a criatura das mãos perguntasse, por um milésimo de segundos, ao meu ouvido "O que você veio fazer aqui, criancinha? No território do desconhecido. No território onde crianças não deveriam vagar, mas são as que mais vagam." Fiquei ali mesmo, olhando, hipnotizado por uma imagem que meu cérebro de criança não conseguia decifrar. Vovó estava na rede, mas a perna dela estava na parede. Havia uma perna pendurada na parede. Havia uma perna pendurada no gancho da rede, junta ao torno da rede, na parede. Porra. Tinha uma perna ali na parede, marrom, de madeira. Eu fiquei pensando em Vovó desfigurada. Fiquei pensando em quem poderia ter arrancado a perna de Vovó. Fiquei pensando em Vovó em pé só com uma perna. Fiquei pensando no cotoco de Vovó. Aquilo me deixou morrendo